A Massa Psicológica nas Instituições: Torcidas Organizadas
- Nathan Barbosa
- 19 de out. de 2014
- 4 min de leitura

O juiz deu o apito final. Como de costume, os torcedores vão aos poucos deixando o local do jogo para retornarem às suas casas. Nem todos. Embates entre torcidas organizadas são como um "te pego na saída [da escola]" não declarado. Dessa vez o encontro foi em uma rodovia, e a organizada aguardava a outra com paus, pedras e rojões. Por fim, um jovem de 21 anos morto atropelado por um dos carros que passavam. Ao pensar em uma grande mobilização de pessoas, interligadas por um período razoável de tempo e razões comuns, o que vem à cabeça?
Igrejas, partidos políticos, torcidas organizadas, comunidades, facções criminosas, conselhos profissionais, fãs de algum produto ou pessoa, atos políticos, dentre inúmeras outras massas com ou sem um dirigente, ou seja, um líder.
Tais instituições aparecem nos noticiários de diversas formas, seja no âmbito da igreja que mantém seus fiéis unidos por longos períodos e capazes de fazer inúmeros sacrifícios, seja em grandes atos políticos que mobilizam multidões com um único propósito porém utilizando-se de diferentes meios para atingi-lo, ou até mesmo em torcidas organizadas que assumem na torcida adversária a máxima da rivalidade. Entre essas instituições, algo em comum: a atemporalidade das teorias de Le bon, McDougall e Freud.
O que a psicanálise tem a dizer sobre as mobilizações em massa?
Demonstrar a atemporalidade de uma teoria que está prestes a completar cem anos é um bom desafio para consolidar uma base de acontecimentos que só mudam seus representantes. A massa psicológica teorizada por Freud reserva muitas características, dentre as quais algumas são universais e, por isso, se torna um deleite atualizar a teoria aos fatos contemporâneos. Falar que algumas características são universais pode custar caro à quem aspira lançar um pensamento, preocupação esta que não infringe a psicanálise visto que seus conceitos permeiam uma psique que é estruturante do sujeito, conservando uma base sólida.
Em uma Viena do século 19, igreja e exército eram orbitados pelos construtos psicanalíticos a fim de se extrair o máximo do funcionamento psíquico, a nível individual ou coletivo, como é caso do importante papel da religião à neurose obsessiva ou a psicologia das massas.
Ao falar de duas massas artificiais - a igreja e o exército -, Freud salienta que na estrutura existente em ambas "o indivíduo se acha ligado libidinalmente ao líder" (1920, p. 49), líder este que se coisifica na figura de cristo e general, sobrepondo-se à instância macro do patriotismo no caso do exército, e da própria igreja no caso da religião. Considera essas duas instituições como sendo artificiais porque seus integrantes necessitam de uma coação externa para se manterem unidos, pelo temor, interesse, comunitarismo, etc., de deus ou patentes superiores. A ligação libidinal é a principal contribuição psicanalítica a essa psicologia, que não se limita a apenas duas palavras, mas à um conceito largo e profundo. A libido entre o indivíduo e a massa ou entre a massa e seu líder perpassa por diversas outras contribuições da psicanálise. Por isso, contemplaremos Mal estar na Civilização,Totem e Tabu, Psicologia das Massas e conceitos fundantes das estruturas psíquicas.
Para inaugurar, falemos das torcidas organizadas. Suas aparições em noticiários evidenciam o lado violento de uma massa, calcados pela agressão aos seus rivais. Seu preceito teórico constata os abandonos instintuais requeridos na nossa entrada no processo civilizatório, que a nível coletivo eclode o mesmo impulso à liberdade primitiva expressa singelamente pela frase "olho por olho, dente por dente", reservando agora os elementos psicológicos de uma massa. Discutimos isso na leitura inaugural sobre a onda de linchamentos do início de 2014, onde concluiu-se que
O marco civilizatório, do qual pode-se colocar em seu encargo a moral e todas as repressões que eclodem dela, acionou da psique um "impulso à liberdade" que se "dirige, portanto, contra determinadas formas e reivindicações da civilização" (FREUD, 1930/2010, p. 58).
Portanto, para analisar uma massa psicológica que tem como primazia a violência, deve-se ter em mente a facilidade das restrições serem afloradas pelo viés agressivo do ser humano, a despeito de que sua moralidade sucumbe à crueldade, brutalidade e destrutividade que outrora estavam reprimidas ou devidamente sublimadas. Em uma massa, adiciona-se que um indivíduo sob essa circunstância seja capaz de realizar coisas que não faria individualmente. Para isso, Le bon fala
[...] o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria e agiria isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos aparecem ou se transformam em atos apenas nos indivíduos em massa (apud Freud, 1920/2011, p. 18)
O leitor que sentir dificuldade nessa abstração pode visualiza-la no filmeHooligans, no qual o protagonista sem histórico de brigas e afeiçoado pelo pertencimento à massa, é capaz de se envolver intensamente. Diferente do filme, que tem um pequeno número de participantes, as torcidas organizadas brasileiras se caracterizam pela quantidade, vide a foto. A massa psicológica numericamente grande aloca, segundo Le bon, "um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos que, estando só, ele manteria sob controle" (apud Freud, 1920, p. 20). Nesse ponto, o sujeito deixa de ser identificado por características pessoais, para preencher características da massa: Torcida Jovem Time, dando à ela o anonimato, a perda da responsabilidade individual de seus integrantes. Tais premissas ratificam que nenhum interesse individual, até mesmo o de autopreservação, sobrepõe o interesse coletivo. Não obstante, Le bon (apud Freud, 1920/2011, p. 27) afirma que a capacidade intelectual da massa encontra-se diminuída em relação ao nível individual, sendo assim ela é movida por extremos, e independe de um grau mínimo de racionalidade, preferindo um discurso simplista e repetitivo. Freud (1920/2011, p. 27) exalta que "quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa". As torcidas organizadas, assim como qualquer outra instituição de massa, obedecem preceitos fundantes da psicanálise. No entanto, ao evidenciar massas que não são violentas ou que tem um líder mais ativo que esta, alguns detalhes importantes aparecem. Em artigos futuros, deve-se contemplar a maioria dos círculos citados no preâmbulo desta análise, como as igrejas atuais, que induzem seus participantes a, por exemplo, doarem objetos preciosos e necessários para si, com argumentos que extrapolam a lógica e a decência, dentre tantas outras que podem ser objeto de nossa atualização dos conceitos psicanalíticos aos fatos cotidianos. Até a próxima.