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O Lixo e o Primitivismo Moderno


Observador que sou, uma inerência de qualquer psicólogo, espiei, na praia, um pai e sua família. A criança brincava com a areia. Desenhava objetos não identificáveis com um palito de picolé enquanto pessoas caminhavam, vendedores vendiam e outras crianças brincavam. Crianças ficam facilmente entediadas, e com essa não foi diferente. Largou o palito no limite de onde a água batia e correu para a barraca de seus pais. O homem, gozando do exercício de sua cidadania, saiu de sua cadeira praiana e abaixou para repreender a decisão de sua cria. "Não se joga lixo na praia.", ele dizia em alto e bom som. Admirei sua decisão. A firmeza é um elemento crucial para a educação. Foi um ato de responsabilidade, aliás, de responsabilização do sujeito. Além do mais, no jogo psicanalítico da vida, beleza, limpeza e ordem ocupam lugar de destaque entre as exigências culturais, já dizia Freud. Ao que parece, essa exigência não havia batido à porta do menino; chegara a hora.


Alguns minutos depois, quando, por coincidência, o veículo daquela mesma família passou por mim na orla, a janela do motorista se abriu e uma guimba de cigarro voou pela janela. Ora, será o mesmo pai? Tive que me certificar, e vi que sim.


Geralmente, a discussão acerca disso gira em torno da educação, isto é, de uma postura que sofridamente precisa ser imitada com base em um modelo celeste. No entanto, o aspecto mais interessante é o motivo que levou este modelo ser adotado e considerado celestial, isto é, por que jogar lixo na rua é uma aberração. Para isso, devemos assumir que limpeza e civilização são inerentes. Atualmente, não há como falhar no primeiro e ser bem sucedido no segundo. Os homens civilizados do passado, hoje não passariam de pessoas fisicamente insalubres, o que é anti-civilizatório. Basta relembrar Cristóvão Colombo, em sua descoberta do Novo Mundo à bordo do navio Mayflower. Ele foi, durante um bom período de tempo, seu exemplo contemporâneo de civilidade, mas hoje perde-se todo esse encanto ao descobrir que sua tripulação não dispunha de uma mala com roupas para quase uma dezena de meses em alto mar, tampouco objetos de higiene pessoal. No racionamento de água potável que era instaurado, pouco se destinava ao banho. Portanto, a ideia de higiene pessoal e saneamento é um elemento não-natural que se mesclou à evolução civilizatória, e hoje não consegue mais se dissociar.


Ainda assim, a humanidade teima em nos dar exemplos modernos de como a civilização continua primitiva. No início dessa reflexão, disse que beleza, limpeza e ordem são exigências culturais impostas, e, como qualquer outra exigência, custam caro à psiquê. Há um dispêndio maior e permanente ligado ao fato de termos que seguir regras de ordem, beleza e higiene, pois seria largamente menos trabalhoso seguir à nossa maneira. Por isso, os exemplos modernos de primitivismo seguem um impulso que vai de encontro a essas exigências. É uma ligeira ação de transgressão, as vezes impensada, que encontra uma satisfação tola de libertação. Sim, me parece tola, tendo em vista que seu custo é mais caro do que sua exigência. Afinal, e agora sim entramos na esfera da educação, ela infringe toda a comunidade, e qual a necessidade da civilização se ela não facilitar o convívio entre os seres humanos?!


Por fim, seguir exigências maiores como são os dez mandamentos, e desconsiderar as menores como as regras básicas de convívio, não nos faz mais civilizados que Colombo. Jogar lixo pela janela de seu carro automático está para a barbárie assim como o conteúdo dos pinicos que eram jogados pela janela na idade média.


O Escritor

Psicólogo pela Universidade Veiga de Almeida, estudante de psicanálise e escritor.

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