Linchamento de Guarujá
- Nathan Barbosa
- 10 de mai. de 2014
- 4 min de leitura

Um retrato falado e um boato nas redes sociais. Isso foi o bastante para moradores da cidade de Guarujá/SP acusarem Fabiane Maria de Jesus de sequestrar crianças e realizar rituais de magia negra. Seria apenas uma acusação equivocada, facilmente resolvida após uma busca pelo verdadeiro caso de polícia: uma tentativa de assalto ocorrida anos antes e por outra pessoa. No entanto, moradores renegaram a ação do Estado e decidiram fazer a justiça com as próprias mãos, culminando em uma morte trágica e extremamente violenta. Mesmo com o inescrupuloso assassinato divulgado por toda a mídia brasileira, alastrou-se pelo senso comum a ideia de uma justiça que exime um poder instituído e muito se aproxima da época medieval, em pleno século 21.
O que a psicanálise tem a dizer sobre a agressividade desmedida e como ela infringe o sujeito que a pratica?
Nos escritos de O mal-estar da civilização, Freud abarcou o tema da agressividade considerando a cultura civilizatória ao qual ingressamos como o início de uma trajetória esplendorosa em seus avanços científicos, mas que impossibilita uma capacidade plena de satisfação instintual por meio da imposição de regras. Para isso, disse, ao rebater o que a civilização nos traz de bom grado:
Mas aqui ergue-se a voz crítica pessimista, lembrando que a maioria dessas satisfações segue o modelo do "prazer barato", [...]. Ele consiste em pôr fora da coberta uma perna despida, numa noite fria de inverno, e em seguida guarda-la novamente. Não havendo estradas de ferro para vencer as distâncias, o filho jamais deixaria a cidade natal, não seria necessário o telefone para ouvir-lhe a voz (FREUD, 1930/2010, p. 46).
O leitor que preferir contemplar o livro depois desse ensaio, irá se deparar com um embaraço textual digno de um adendo. Ora, se a implantação cultural isolou de nosso psiquismo a plena satisfação instintual, resta-nos dizer que antes da chegada dos europeus na América a vida psíquica era de pouca exigência, portanto, de felicidade consumada. Um silogismo socrático daria conta desse revés, mas Freud sinaliza que falta-lhe documentação histórica para comprovar tal fato psíquico, admitindo a partir da civilização uma eterna busca inalcançável pela felicidade, sem compará-la ao passado. O marco civilizatório, do qual pode-se colocar em seu encargo a moral e todas as repressões que eclodem dela, acionou da psiquê um "impulso à liberdade" que se "dirige, portanto, contra determinadas formas e reivindicações da civilização" (p. 58), traduzindo uma originalidade não domada pela civilização. Não seria exceção considerar o processo de civilização intrínseco ao desenvolvimento libidinal, assumindo que a maior reivindicação da cultura, decerto, é o aspecto sexual da relação humana, tanto a nível psicológico quanto físico, incluindo-se qualquer ramificação destas; a segunda admite-se, sem muito pesar à teoria, ser a justiça.
O propósito mor da vida contemporânea encontra-se em equilibrar a liberdade individual e as exigências da vida em grupo. Isso se fez necessário, claro, a partir da configuração cultural humana, a partir de Totem e Tabu, momento na literatura freudiana sobre a gênese da família e coletividade (p.62). Não há como encontrar este equilíbrio em outro lugar senão, primordialmente, na justiça. O fato que a demanda é único: um crime contra um indivíduo que, quando julgado e punido, resguarda toda a comunidade de suas mazelas. A civilização concebeu a justiça para aclarar o que mais se assemelha ao ideal harmônico entre coletivo e unidade, e esse é"um direito para o qual todos contribuem para o sacrifício de seus instintos" (p. 57), lançando mão do poder na forma de força bruta, que em seu primórdio dominava as relações e se impunha sobre os mais fracos, para instituir um poder nomeado a outrem.
Renegar a primazia do "olho por olho, dente por dente", uma vez que nem sempre ela poderia ser consumada pelos mais fracos, para dar lugar à uma instância superior, foi um passo evolutivo importante e necessário, pois assim pode-se aproximar ao máximo de uma justiça honesta, ao passo que esse julgamento deva ser eficaz e congruente. Os recentes atos de linchamento representam tudo o que a civilização procurou combater ao longo das eras, fazendo-se incontestável uma ordem psíquica que busca o retorno à sua liberdade, tal como um impulso que se dirija aos muitos abandonos instintuais que a ordem cívica nos solicitou. É incontentável que, quando não mais haja eficácia na justiça concedida, o inconsciente convoque a barbárie típica da era não civilizada. O homem é lobo do próprio homem, em todo o predicado conceitual que Hobbes colocou essa frase, nos serve de parâmetro para dizer que a guerra está para paz como a civilização está para a erupção dos instintos em diversas formas, inclusive a menos danosa, a sublimação.
A liberdade individual não é um bem cultural. Ela era maior antes de qualquer civilização, mas geralmente era sem valor, porque o individuo mal tinha condição de defendê-la. Graças a evolução cultural ela experimenta restrições, e a justiça pede que ninguém escape a elas (FREUD, 1930/2010, p. 57).
Ainda que fosse obstante, não devemos deixar nossa análise acabar assim, pois o fenômeno da agressividade psíquica vai além, e sempre culmina em uma culpa inconsciente ou consciente. Freud explica. Conceder o ato justiceiro à uma instância superior não foi uma decisão puramente calcada na busca por uma justiça 'melhor', pois existe um outro aspecto de igual importância: a inevitável culpa trazida pelo mal à outra pessoa, tínhamos que nos livrar disso. O que tem haver com nossa análise? Bem, cinco suspeitos do linchamento se entregaram voluntariamente para a polícia, uns assumindo a culpa e outros a negando.
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